Por
Ozias Deodato Alves Jr, jornalista
em Biguaçu- Santa Catarina - Brasil (e-mail ozias@matrix.com.br)
A saga dos deuses guaranis
História
mitológica inédita dos índios guaranis Mbyás
de São Miguel, Biguaçu (Santa Catarina).
Por
Ozias Alves Jr (jornalista)
e-mail ozias@matrix.com.br
No
princípio dos tempos, a Terra era habitada por criaturas abomináveis.
Eram os "Pamba'e Djaguá" (Feras Extraordinárias).
"Nhanderu ete", o deus supremo do universo, decidiu
eliminar os "Pamba'e Djaguá" lançando
sobre a terra uma estrela incandescente, a "Djatchir Tata'i guatchú". Tidos
como criaturas do mal, os "Pambá é Djaguá",
que a civilização ocidental chama de "Dinossauros" ("Lagartos
Terríveis" em grego), foram mortos pelo terrível calor provocado
pelo cometa. Sobre as cinzas deste mundo, "Nhanderú etê"decidiu
repovoá-lo com um novo ser, o "Homem". Em
guarani, "Nhanderú etê" significa "Deus Verdadeiro".
É o Deus de forma humana cujos olhos refletem a infinidade das cores.
Onde aparece, reflete luz. Vaga pelo cosmos num veículo voador chamado
"Bairý".
"Nhanderu
ete"
percorreu o "Nhe'ê Rekuagui", o "lugar das almas",
o mundo dos espíritos. De lá trouxe "Nhande ypy",
o "Primeiro Homem", transportando-o em seu "Bairý" até
a Terra. Chegando
aqui em nosso planeta, "Nhanderu ete" advertiu a "Nhande ypy" que sua missão era povoar a Terra e não permitir
que o egoísmo tomasse conta dos corações de seus descendentes.
Acrescentou o deus que o egoísmo tornar-se-ia a raiz de todo o mal
da humanidade pois desencadeia as guerras e toda sorte de violência
do homem contra o homem. Advertiu para que os homens prezassem por sua
memória, cujo exemplo inspiraria os homens a praticar o bem.
Nascia ali a religião guarani. -
Nunca pense em si para que a humanidade não sofra, aconselhou
profeticamente o Deus na língua do mundo dos espíritos que
se transformou no primeira idioma da Terra, segundos os guaranis mbyás. "Nhandeý
pý" era um espírito. Chegando à Terra, transformou-se
num "homem" de carne e osso. Um espírito, se quiser e tiver a energia
necessária, pode se materializar em forma de um corpo, diz a tradição
dos índios guarani.
"Nhandeý
pý" , o "Adão" dos guarani mbyá, ficou dois anos
sozinho na Terra. "Mokõi aragudjê" (dois anos depois), eis
que o deus "Nhanderú etê" voltou ao mundo espiritual
"Nheé Rekuaguí"para
trazer uma "Nhande Tchir pý" (A 1ª mulher). Tomando-a
como esposa, "Nhandeý pý"teve
seis filhos cujos nomes são: 1) Kraí í (Poder
Divino), 2) Nhamandú (Reflexo do Sol), 3) Djatchir
(Dona da Noite), 4) Wherá Tupã (Deus da Chuva), 5)
Wherá Nhimbodjerê (Dia e Noite, o giro da Terra) e
6) Pará Guatchú (Oceano). Eram
cinco homens e uma mulher ("Djatchir"). Eis o grupo inicial do qual,
segundo os guaranis, descende a humanidade. Os mbyá têm o
costume de adotar como sobrenome um dos seis filhos do casal "Nhandeý
pý" e "Nhande
Tchir pý". Segundo eles, tal costume visa indicar de quem descende
os atuais índios entre os seis primeiros filhos da humanidade. O
primeiro casal e seus filhos são os primeiros homens "mortais" da
humanidade, de acordo com a mitologia guarani mbyá. O deus supremo
"Nhanderú etê" gerou três deuses secundários
principais para serem seu intermediário junto aos homens. Tratam-se
de: 1) "Kraí" (Iluminado), 2) "Kraí Rendy Vydjú"
(Poder da Luz) e 3) "Kraí Kendá" (Anjo que mostra
o Bem e o Mal). Este
último, "Kraí Kendá", é quem os católicos
chamam de "Anjo da Guarda" pois é um espírito que adverte
os homens sobre o Bem e o Mal. É aquela voz interior que chamamos
"Consciência". Ao
mesmo tempo que os deuses vindos do espaço sideral percorriam a
Terra, o Adão e Eva da mitologia guarani mbyá vivia num mundo
de bonança e prosperidade. Mas faltavam os netos. O casal tinha
seis filhos- cinco homens e uma mulher. Os filhos não tinham esposas.
Se quisesem ter filhos, só a irmã. Porém, mesmo nos
primórdios da humanidade, respeitava-se o tabu do incesto, isto
é, irmão não poderia manter relação
sexual com a irmã. Em
virtude desse problema, o deus supremo do universo "Nhanderú
etê" voltou novamente ao mundo dos espíritos, o "Nheé
Rekuaguí", no qual buscou três mulheres e um homem. Transportou-os
em seu "bairý", a nave voadora que atravessa os confins do
universo numa velocidade inimaginável. As
três mulheres tornaram-se as esposas dos cinco irmãos. Já
o homem trazido pelo deus tornou-se o marido da filha Djatchir (Dona
da Noite). Desses casamentos, nasceram filhos, netos do primeiro casal
da humanidade. Os netos, todos primos, casaram-se entre si. Houve também
casamentos com tios. Assim foi-se passando o tempo e a população
humana multiplicando-se no planeta Terra. A
população cresceu acentuadamente ao longo do tempo. Todos
falavam a mesma língua. Ao contrário dos católicos,
os guaranis mbyás não possuem lenda semelhante à da
bíblica Torre de Babel. Dizem que a primeira língua do mundo,
surgida por inspiração divina, foi modificando-se ao longo
do tempo quando grupos foram afastando-se da tribo original com o objetivo
de conquistar a Terra. Com o distanciamento e a falta de comunicação,
tais grupos foram inventando novas palavras que se tornaram particulares
da tribo. Com o tempo, passaram a falar idiomas cada vez mais diferentes,
de sorte que chegou um tempo em que as diferentes tribos não mais
se entendiam. As
mudanças apareceram não só apenas nas línguas.
Os povos, mesmo primos, foram diferenciando-se em costumes, hábitos,
cultura, vestuário e, principalmente, religião. Dois eram
os principais grupos humanos. O primeiro era os da tribo dos "Kurupí" (egoístas).
O segundo tratava-se dos "Iapó Gú" (os que vivem nas
rochas). Os
"Kurupís" formavam uma coligação de povos em
cuja religião já não mais se cultuava o verdadeiro
deus, o "Nhanderu etê", mas "espíritos ruins da
Terra". Segundo os guaranis, os "Pambá é Djaguá"
(as criaturas terríveis dos primórdios da Terra- "dinossauros")
eram guiados por espíritos ruins. Com a morte das criaturas, os
espíritos desprenderam-se dos animais e ficaram vagando pela Terra.
Com o tempo, povos como os "Kurupís" passaram a cultuar tais
espíritos que apareciam em forma de "fantasma". Conforme
os índios, os "fantasmas" são os espíritos ruins que
os católicos chamam de "demônios". Só vivem na Terra.
São tão medíocres que não vieram do cosmos.
Nasceram da própria Terra, um mundo de provação. Em
guarani, recebem o nome de "Baipotchir" (Raiva de Gente). Já
os "Iapó Gú" eram os povos que viviam em aldeias de
casas de pedra nas quais contavam com iluminação moderna.
Seria a eletricidade? A
religião dos "Iapó Gú", ao contrário
dos "Kurupí", não invocavam demônios "Baipotchir" como
deuses. No entanto, esse povo também não acreditava em "Nhanderú
etê". Havia alguns entre eles que eram "puros de alma", mas a
grande maioria não passava de gente corrupta moralmente. Antes
poucos, os "kurupi" multiplicaram-se demasiadamente de sorte que
passaram a ambicionar a conquista do mundo. Entre os "kurupi", havia
um chefe chamado "Karambá", chefe de um poderoso exército.
Sua alma fora dominada por um diabo "Baipotchir" . Alucinado pelo
mal e de alma perversa, "Karambá' ambicionou conquistar os
"Iapó Gú". Eis
que um dia começou uma gigantesca guerra entre os "kurupi"
e os "Iapó Gú". Ambos povos não dispunham de
tecnologia. Fora uma guerra de "machados de pedra". Mas as batalhas impressionaram
pelo número gigantesco de combatentes. Somavam milhões de
guerreiros. A
guerra toda durou apenas dois meses, mas fora devastadora. Matou tanta
gente que a humanidade ficou reduzida ao mínimo. O local da batalha
final situa-se hoje num ponto do oceano, surgido após o dilúvio,
a catástrofe que ocorria na Terra séculos após a grande
guerra dos "kurupí" e os "Iapó Gu". O
chefe "Karambá" sobreviveu à catastrófica guerra,
mas não viveria por muito tempo. Sucumbiu a uma doença misteriosa.
Já os poucos sobreviventes entre os "Iapó Gú"
tornar-se-iam, milênios mais tarde, os pais dos povos da antiga Atlântica,
a misteriosa ilha do meio do oceano atlântico, e os incas, conforme
diz a lenda guarani mbyá. Não
se sabe quanto tempo foi, mas as poucas milhares de pessoas que sobraram
após a grande guerra foram multiplicando-se novamente nos séculos
de paz que se prosseguiram. No entanto, as novas gerações
tornaram-se mais perversas ainda. Continuaram a não acreditar no
deus verdadeiro, o"Nhanderú etê". Sucederam-se séculos
de inúmeras breves guerras de pilhagem. Tratava-se de um mundo de
mentira, persevidade, pecado e crueldade. Poucas
tribos eram as que acreditam em "Nhanderú etê". A maioria
dos povos tornou-se idólatra de deuses "baipotchir" . E
a Terra tornou-se novamente um mundo de total corrupção moral.
Numa de suas passagens pelo planeta, "Nhanderú etê"
concebeu a idéia de que o mundo deveria ser destruído para
recolonizá-lo com homens mais puros como "Nhamanduráý"
(Filho do Sol). Concebeu a idéia do "Dilúvio". "Nhamanduráý"
acreditava em "Nhanderú etê". Sua fé era persistente.
Numa certa noite, "Nhanderú etê" apareceu em sonho,
dentro de seu veículo voador "Bairý", para "Nhamanduráý"
. No sonho, o deus avisou-lhe que iria destruir o mundo com uma chuva torrencial.
Descendente de uma mortal com o deus "Kraí Kendá",
"Nhamanduráý"foi
aconselhado a subir na maior montanha da terra, único lugar em que
a água do Dilúvio não alcançaria. Com ele e
sua mulher "Nhandetchir Ypy", outros dois casais foram avisados
para se salvarem no alto da mesma montanha. Eis
que quando tinha 86 anos de idade, o grande Dilúvio começou
com uma tempestade nunca antes imaginada. Foi então que a humanidade
inteira foi destruída, sobrando os três casais, sob liderança
de "Nhamanduráý" . Antes
a Terra era um imenso continente. Após o Dilúvio, surgiram
os "Para Guatchú" (oceanos) que dividiram a Terra em vários
continentes. Foi então que o hoje conhecemos como América
ficou separado da Europa, África e Ásia. Antigos rios transbordaram
formando mares. Montanhas viraram ilhas.
A
humanidade voltou à estaca zero com três casais. Logo "Nhamandu Ra'y"
ficou
viúvo pois sua mulher, que havia perdido a fé em "Nhanderu
eté", falecera de "Ikaruguapá" (paralisia). Outras
doenças dizimaram os outros dois casais pelo mesmo motivo de não
terem fé no verdadeiro deus. Eis
que "Nhanderú etê"buscou
uma mulher para "Nhamandu Ra'y"em
outro mundo espiritual chamado "Nhanderu Vutchu" (Onde o Sol nasce). Os
índios guaranis acreditam que a alma boa vai para o céu e
o mal fica na Terra com os diabos. Estes últimos são invisíveis,
mas segundo os índios, as pessoas sentem suas desagradáveis
presenças. Eis
que um dia veio à Terra "Nhanderu Ra'y" para a missão
de ensinar os homens o verdadeiro ensinamento de "Nhandery etê".
Segundo os índios, "Nhanderu ra'y" era "Jesus Cristo".
Contando
a História do Guarani Nato da Região da Grande Florianópolis
e principalmente da Ilha de Santa Catarina
Por
Milton Moreira Wherá Mirim
Cacique
da aldeia dos índios guarani Mbyá de São Miguel, Biguaçu,
Santa Catarina (Brasil)
Na
Ilha de Santa Catarina, tinha uma aldeia que se chamava Tekoa Guassú-Há-Há-Kupé.
Essa aldeia era muito respeitada, porque só moravam caciques, curandeiros,
conselheiros, líderes de instrumentos musicais, e até os
líderes de caçadores. Desta maneira nas outras aldeias tinham
somente os segundos líderes.
Tinham
as aldeias chamadas de Itakuruii, Pira’júmboaié e Mossamby,
que ficava numa ilhazinha onde localizava-se o cemitério dos índios.
Esses índios eram das tribos Chiripás e Phaím. Essas
duas tribos eram de peles claras, por esse motivo passaram a ser chamadas
de Guarani-Karijós pela sociedade branca, porque não sabiam
a definição certa. Mais
ou menos por volta de 1.767 índios e 3.600 mulheres e crianças
habitavam a Ilha de Santa Catarina. Nesta época ainda não
tinham muito contato com homens brancos. Ao passar do tempo a infiltração
do homem branco foi tanta que surgiram doenças como tuberculose,
bronquite e outras. Essas doenças foram que acabaram com maior parte
dos índios Guarani-Karijós. Os
índios que restaram ainda sofreram pela segunda vezcom
os conquistadores da Ilha de Santa Catarina, que começaram as matanças
dos Guarani-Karijós. Desses índios sobraram apenas sete casais,
que tiveram que fugir para o sul da ilha. Escolheram a ponta sul da Ilha
porque ficava mais próxima do continente. A travessia aconteceu
da ponta da Ilha até a praia da Pinheira. Mas esses casais de índios
não queriam ficar na beira da praia por motivo de poderem ser massacrados
de novo, então tomaram rumo norte até depararem-se com o
Morro dos Cavalos. Ficaram ali até surgir a 1ª Guerra Mundial,
que foi por volta de 1914. A partir daí tomaram rumo oeste, próximo
a Santo Amaro da Imperatriz. Lá acharam um lugar chamado até
hoje de Rio do Bugre. Foi
somente a partir de 1942 que os índios foram aparecendo pouco a
pouco na região de Palhoça junto com os colonizadores. Desses
índios Guarani, já granfilhos destes índios Guarani-Karijós,
que vieram a ser nossos pais, restam só nós atualmente. A
partir de 1978 começamos a procurar um lugar para ficar, até
que encontramos um lugar aqui no bairro São Miguel, município
de Biguaçu. Estamos neste lugar desde 12 de outubro de 1987. Nós
somos os últimos dos índios Guarani-Karijós que ainda
falamos o nosso idioma nato. Por este motivo, queremos parabenizar o nosso
lugar e também a toda a comunidade de São Miguel, Biguaçu
e Florianópolis. Pedimos para os nossos governantes que olhem mais
para nós, que ajudem mais a minha comunidade em termos de alimentos,
para que um dia possamos ajudar o Brasil.
Agradecemos
em nome da comunidade indígena pela compreensão e pela honra
que nos deu.
Esta
é a transcrição ipsis litteris do texto manuscrito
do cacique Milton Moreira WHERÁ MIRIM.
O texto foi redigido em 15
de fevereiro de 1989.
A
História da tribo dos guaranis Mbýas de São Miguel,
Biguaçu (SC) relatada pela tradição oral
A aldeia dos índios guaranis de São Miguel, no município
de Biguaçu (SC), surgiu em 12 de outubro de 1987. Situa-se às
margens da rodovia BR-101, a cinco quilômetros ao norte do centro
de Biguaçu e a 20 do centro de Florianópolis Essa
tribo, que reúne 79 pessoas, é chamada de "Guaranis Mbýas". "Mbyá"
significa "gente" na língua guarani. O "morubixaba" (cacique)
da tribo é Milton Moreira Wherá, 37 anos. Classificada
pelos antropólogos de "Mbýas", a tribo se diz, no entanto,
descendentes dos índios Carijós das tribos "Chiripás"
e "Phaim", da Ilha de Santa Catarina. "Essas duas tribos eram de peles
claras, por esse motivo passaram a ser chamadas de Guarani-Karijós
pela sociedade branca, porque não sabiam a definição
certa",, escreveu o cacique Milton Moreira Wherá num pequeno
ensaio em que resumiu, por escrito, a história de sua tribo transmitida
oralmente por gerações. O texto data de 15 de fevereiro de
1989. "Carijó"
era como os bandeirantes chamavam os índios de língua guarani
que vivam no litoral catarinense nos séculos XVI e XVII. "Carijó"
vem de "Cari-yó", uma palavra derivada de "Cari", que significa
"branco" em Tupi, a língua falada pelos bandeirantes vindos de São
Paulo. "Cari" vem em alusão à pele mais esbranquiçada
dos índios guaranis do litoral catarinense. Os
índios da aldeia de São Miguel, Biguaçu, contam que
seus descendentes, os "Chiripás" e "Phaim", que falavam um dialeto
guarani, viviam na ilha de Santa Catarina. Eram pescadores. Afinal,
a Ilha de Santa Catarina era um paraíso da pesca nos séculos
XVI e XIX, antes do estrago (lê-se poluição e degradação
do meio ambiente) proporcionado pela ocupação e crescimento
desordenado da população branca (neoeuropéia ou descendente
dos europeus) nesse espaço geográfico. Hoje em Florianópolis
e vizinhanças vivem em torno de 250 mil pessoas. Os
guaranis Mbýas falam com muita nostalgia da Ilha de Santa Catarina,
"onde
tinha fartura de comida e peixe", conforme palavras textuais do cacique
Milton e seu sogro, seu Arcino Wherá, o cidadão mais idoso
da aldeia. "Chiripá"
significa "escuro"; já "Phaim" é "claro". O cacique Milton
conta que eram duas tribos distintas com indivíduos racialmente
diferentes, mas falantes de dialetos guaranis mutualmente compreensíveis.
Dos casamentos entre gente dos dois grupos, surgiu um povo autócone
da Ilha de Santa Catarina (Meimbipe, conforme os índios. Os
"Chiripás" e os "Phaim" viviam em quatro aldeias, conforme conta
a tradição dos Mbyás de São Miguel, Biguaçu.
As aldeias são: 1) Tekoa guassú Há Há Kupé,
2)
Itakuruii, 3) Pira'Jumboaié e 4) Mossamby.
Os
nomes perfeitamente lembram as atuais localidades de 1) Cacupe (Há
Há Kupé), 2) Itacorubi (Itakuruii), 3) Pirajubaé
(Pira'Jumboaié)
e 4) Moçambique (Mossamby). Sobre esse último, os
índios dizem que se tratava de uma ilhota onde situava-se um cemitério
indígena. A
aldeia de "Tekoa guassú Há Há Kupé",
conforme relata a tradição oral, era muito respeitada já
que "nela viviam caciques, curandeiros, conselheiros, líderes
de instrumentos musicais e até os líderes de caçadores",
conforme escreveu o cacique Milton Moreira Wherá.
A
CHEGADA DOS HOMENS "BRANCOS" - Eis
que apareceram os "homens brancos". A tradição oral
dos índios de São Miguel conta que os Chiripás e os
Phaim sucumbiram a epidemias de tuberculose, bronquite e outras doenças
trazidas pelos brancos contra as quais os índios não tinham
defesa imunológica. As doenças foram responsáveis
pela morte de boa parte dos antigos habitantes da ilha, contam os Mbyás
de São Miguel, Biguaçu. Apesar
das epidemias, relatam os índios, ainda sobraram um bom número
de silvícolas na Ilha de Santa Catarina. "Os índios que
restaram ainda sofreram pela segunda vez com os conquistadores da
Ilha de Santa Catarina (os brancos), que começaram as matanças
dos Guaranis-Karijós", observa o cacique.
ÊXODO-
Os índios que sobraram na Ilha de Santa Catarina, relata a tradição
oral dos Mbyás, tiveram
que fugir. "Desses índios sobraram apenas sete casais, que tiveram
que fugir para o sul da ilha (de SC). Escolheram a ponta sul da Ilha porque
ficava mais próxima do continente. A travessia aconteceu da ponta
da ilha até a praia da Pinheira (Hoje no sul do município
de Palhoça). Mas esses casais de índios não queriam
ficar na beira da praia por motivo de poderem ser massacrados de novo,
então tomaram rumo norte até deparem-se com o Morro dos Cavalos",
escreveu Milton Moreira Wherá. A fuga, segundo ele, deu-se no século
XVIII.
REFÚGIO- Os
índios viveram em relativa paz no Morro dos Cavalos até entre
o final do século XIX e o início do século XX. Um
bom grupo dos descendentes deles rumou para as matas do interior de Palhoça,
entrando em território de Santo Amaro da Imperatriz, indo instalar-se
na região popularmente conhecida por "Rio dos Bugres". Por quê?
Consequência da expansão da colonização branca
e dos conflitos de terra.
O
nome "Rio dos Bugres" alude à constante presença de índios
kaingangues e xoklengs, falantes de línguas das famílias
kaingangue e jê respectivamente. A tradição oral dos
guaranis de São Miguel, Biguaçu, relata inúmeras histórias
de contatos não amistosos entre os guaranis e os "bugres", comumente
chamados os "botocudos" (que usam espetados nos lábios, orelhas
e bochechas pequenos pedaços de madeira chamados 'botoques' como
os kaigangues e xoklengs, tidos pelos Mbyás como "gente arredia
e de difícil trato".
RETORNO
A MORRO DOS CAVALOS-
Por volta dos anos 1940, conforme o cacique Milton Moreira Wherá,
o grupo deles saiu da região de Rio dos Bugres retornando a Morro
dos Cavalos, onde passaram a ter certa proteção oficial do
governo. Afinal, em 1914 houve a pacificação dos "bugres"
kaingangues e xoklengs. Em 1910, havia sido fundado o Serviço Nacional
de Proteção aos Índios que mais tarde, em 1967, virou
a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Nos anos 40,
os índios "soltos por aí" não precisavam mais temer
os "bugreiros", que tantos mataram kaingangues e xoklengs nas matas do
interior de Santa Catarina.
De
índole mais dócil e pacífica, os guaranis Mbyás
não sofreram a ação dos bugreiros, mas sua tradição
oral não é isenta de histórias de violências
e conflitos com a sociedade branca, inclusive com os "bugreiros".
NOVA
MIGRAÇÃO- O
grupo viveu no Morro dos Cavalos, uma área de terra que nos anos
70 virou parte da reserva florestal Parque do Tabuleiro, idealizada pelo
famoso botânico Raulino Reitz (1919-1990). Raulino nasceu em Antônio
Carlos em 1919. Antônio Carlos era um antigo distrito do município
de Biguaçu. Emancipou-se politicamente em 1963 e virou um município.
Faleceu em 1990. Reitz deixou vasta obra sobre botânica. Foi também
historiador. Escreveu dois livros de história regional- “Frutos
da Imigração” (1963) e “Alto Biguaçu- Uma narrativa
cultural tetrarracial” (1988). Ambos são a respeito da história
de Antônio Carlos, enfocando a colonização alemã.
Mas,
voltando ao assunto índios, ao longo do tempo, o Morro dos Cavalos,
onde estavam os guaranis Mbyás que se dizem descendentes dos "Chiripás"
e "Phaim" fugidos da Ilha de Santa Catarina no século XVIII, passou
a ser ocupado também por índios guaranis vindos do Rio Grande
do Sul e do Paraguai. Estes últimos saíram de suas terras
devido a conflitos de terras originários da expansão da colonização
branca.
Surgiram,
então, dois grupos distintos de índios guaranis na reserva
de Morro dos Cavalos. Um dos chamados "Mbyá", que se dizem descendentes
de guaranis da Ilha da Santa Catarina. Já os chamados "paraguaios"
são os Nhendevá", que, tal como "Mbyá", também
significa "gente" na língua guarani. Existe também um terceiro
grupo de guaranis que se chama "Kayová".
O
grupo Mbyá, conforme o relato do cacique, tinha uma língua
originária do antigo dialeto da Ilha de Santa Catarina. Com o tempo
e em função do contato e os casamentos com indivíduos
do grupo "Nhendevá", os Mbyás foram falando mais o dialeto
Nhendevá. Eis
que nos anos 1960, por iniciativa do pai do atual cacique Milton, o quase
esquecido dialeto "como nossos ancestrais falavam na Ilha de Santa Catarina"
passou a ser incentivado a ser falado entre eles. O pai de Milton era líder
do grupo e a decisão de falar a "nossa língua" foi
fator de identificação do grupo, que foi distinguindo-se
da maioria Nhendevá. "Nós somos os últimos dos
índios Guarani-Karijós que ainda falamos o nosso idioma nato",
escreveu Milton. "Idioma nato" refere-se à antiga língua
dos índios Chiripas e Phaim ou algo próximo. NOVA
TERRA EM BIGUAÇU- Em
1978, o grupo Mbýa começou a procurar outra terra para se
mudar. Morro dos Cavalos tornou-se pequeno para tantos índios. Um
grupo dos Mbyás foi-se embora para Parati, no Rio de Janeiro, conforme
relata o cacique Milton Moreira Wherá.
Na
década de 90, registrou-se a migração de índios
guaranis para vários pontos de Santa Catarina. Aqui uma lista de
onde grupos deles assentaram-se:
1) Palhoça, 2)
Biguaçu, 3) Guabiruba, 4) Itajaí , 5) Navegantes, 6) Araquari. , 7)
Joinville., 8) Barra do Sul. , 9) São Francisco do Sul., 10) Joinville, 11)
Passo de Torres, 12) Garuva, 13) Treze Tílias, 14) Cunha Porã, 15) Ibicaré,
16) Itapiranga, 17) Dionísio Cerqueira, 18) Guaraciaba, 19) Barra Velha, 20)
Jaguaruna. 21) Araranguá e 22) Guaramirim.
Em
12 de outubro de 1987, os Mbyás do cacique Milton Moreira Wherá
Mirim assentaram-se em São Miguel, Biguaçu, às margens
da BR-101, num antigo camping abandonado. Hoje são donos da reserva,
apesar de ainda não estar totalmente legalizada pelo Governo Federal,
o que deverá acontecer em poucos anos. Em
Santa Catarina, vivem atualmente em torno de oito mil índios das
tribos guaranis, xoklengs e kaingangues. Os índios de Santa Catarina,
além dos de outros estados brasileiros, somam 270 mil indivíduos,
o que representam 0,2% da população brasileira. Esses 270
mil índios estão divididos em 206 etnias e 170 línguas. Mas,
voltando aos guaranis Mbýas, nos últimos 11 anos, os índios
de São Miguel, Biguaçu, conseguiram melhorar sua aldeia.
Ganharam luz elétrica, melhoraram o abastecimento de água,
tiveram uma escola instalada em sua reserva neste ano de 1998 e ampliaram
amizades junto ao povo de Biguaçu.
HISTÓRIA
ORAL - A
história oral dos índios Mbya é riquíssima.
Mas eles não a registraram por escrito. Só agora, nessa década
de 90, é que os Mbyás estão utilizando a escrita,
adaptada ao português. Eles já possuem uma escola indígena
na aldeia, mas não há ainda cartilhas em guarani Mbyá.
Mas isso é outro problema. Esses
índios, no entanto, não escrevem frequentemente. Isso deve-se
ao fato que a escrita não está na tradição
deles e escrever é um exercício árduo para quem não
está acostumado ou não possui uma sólida escolaridade. O
cacique Milton Moreira Wherá escreveu em 15 de fevereiro de 1989
um pequeno resumo da história de sua tribo. O manuscrito foi passado
a limpo a máquina de escrever e a cópia foi xerocada. Esse
texto, tudo que existe registrado por escrito sobre a rica história
oral dessa tribo, é utilizado pelo cacique nas aulas da escolinha
de sua aldeia. No
entanto, o vasto material que se pode extrair da história dessa
tribo, relatada de geração a geração e contada
nas reuniões coletivas entre eles, está a espera do registro
por escrito.
Qual
a origem dos nomes "Cacupé", "Pirajubaé", "Itacorubi" e "Moçambique",
bairros e praia respectivamente da atual Florianópolis? Desconheço
a tradução dos nomes desses lugares da ilha de Santa Catarina
em livros históricos de autores catarinenses. Não sei se
alguém já apresentou alguma tradução a respeito
desses nomes. A tradução que apresento neste breve artigo,
que pode ser diferente a de outros autores, vem de uma fonte fidedigna:
os índios guarani mbyá, da aldeia de São Miguel, em
Biguaçu. Esses
índios se dizem descendentes dos "carijós", os antigos habitantes
da ilha de Santa Catarina. Os "carijós" foram quase totalmente exterminados
por doenças e escravidão pelos "bandeirantes", nos séculos
XVI e XVII. Vale
lembrar que o nome "carijó" era dado aos guaranis que viviam no
litoral catarinense pelos bandeirantes, os temíveis caçadores
de índios vindos de São Paulo. "Carijó" (cari-ió)
deriva de "cari", que significa "branco", em alusão à pele
mais esbranquiçada dos nativos catarinenses. Os índios chamavam
a si mesmos de "avá" ou "abá", cuja tradução
é "gente". Já os "bandeirantes" eram conhecidos pelos nativos
por "tapuya" (bárbaros). Conforme
os guarani de Biguaçu, seus antepassados que habitavam a ilha de
Santa Catarina pertenciam a dois grupos distintos chamados "Chiripá"
(escuros) e "Phaim" (claros). Originários do atual Paraguai, migraram
rumo ao litoral catarinense séculos antes da chegada dos europeus.
Em função dos casamentos interétnicos entre os dois
grupos falantes de dialetos guaranis mutualmente compreensíveis,
surgiu o povo indígena nativo da ilha que os colonizadores brancos
encontraram nos séculos XVI e XVII. Segundo
os guarani mbyá de Biguaçu, "Cacupé" era uma grande
aldeia onde residiam caciques, curandeiros, conselheiros, músicos
e caçadores. Vem de "Tekuá guassú Há Há
Kupé", que significa "Terra Grande do Pé de Erva Mate".
Já "Pirajubaé", outra aldeia, vem de "Pirá'Jumboaié"
(Outro tipo de peixe amarelo). Reporta-se à abundância no
local de um tipo de peixe amarelo que os antigos índios carijós
conheciam por "Pirá'Jumboaié". "Itacorubi"
é a pronuncia aportuguesada de "Itakuru-í", uma espécie
de passarinho. O pássaro é o "itakurú". O "í"
significa "pequeno" no idioma guarani. Portanto, "itakuru-í" significa
"itakuru pequeno", um passarinho, segundo os guarani mbyá, existente
em abudância próximo à antiga aldeia que passou a ser
conhecida por esse nome. Já
a praia de "Mossambique" não tem nada a ver, segundo os índios,
com o país "Mossambique", da costa oriental da África. O
nome vem de "Mossamby", que significa "cemitério". Segundo
os guarani de Biguaçu, "Mossamby" era uma pequena ilhota próxima
à costa da ilha de Santa Catarina onde os índios executavam
seus deliquentes. Sim, os carijós aplicavam a pena de morte, contam
os guarani de Biguaçu. Consistia-se no enforcamento do condenado
numa árvore na ilhota do "Mossamby". Onde
está hoje essa ilhota? Segundo os índios de Biguaçu,
a ilhota de Mossamby, que ficava quase encostada à ilha de Santa
Catarina, já não existe mais. O pequeno estreito que a separava
da ilha de Santa Catarina está hoje ligado por aterro surgido pela
erosão, provavelmente pelo desmatamento da costa durante os últimos
séculos. Acreditam os índios que a ilha fica perto da atual
praia de Mossambique. Daí à alusão ao nome pelo qual
o lugar passou a ser conhecido. A
ilha de Mossamby era tida como maldita por causa da proliferação
de espíritos ruins, certamente almas penadas dos executados. O interessante
é que hoje a praia de Mossambique volta e meia é percorrida
à noite por pessoas que querem ver discos voadores. Não seriam
"espíritos voadores"? Os
índios guarani mbyá têm grandes histórias.
O
homem que gostava de macaco
Por
Ozias Alves Jr (Jornalista de Biguaçu- Santa Catarina- Brasil) - E-mail
ozias@matrix.com.br Certa
vez estava entrevistando um senhor idoso de Governador Celso Ramos a respeito
de qual era a comida dos antigos moradores do interior de Biguaçu
no começo do século XX. Buscava informações
para uma pesquisa histórica.
-
Os antigos comiam macaco, contou-me o informante. -
Macaco? Que interessante. Como era o sabor? O senhor já comeu macaco?,
indaguei-o. -
Não. Nunca. Isso era comida de matuto porco que gostava de comer
nojeira. Ora, onde já se viu! E eu tenho cara de comer macaco, meu
filho?!, respondeu-me o senhor com o ar meio arrenegado. Curioso,
fui questionando-o sobre aquela informação interessantíssima.
Afinal, já havia lido a respeito de hábitos alimentares dos
índios que os colonizadores portugueses incorporaram. Os índios
comiam macaco. Muitos portugueses que chegaram ao Brasil juntaram-se com
as índias e dessas uniões nasceram mestiços conhecidos
por "caboclos" ('gente do mato', em tupi-guarani). O povo brasileiro descende
em boa parte parte desses mestiços (não esquecendo dos negros.
Mas isso é outra história). Os
caboclos e colonos brancos que tiveram contato com eles, como os portugueses
açorianos que chegaram a Santa Catarina no século XVIII,
incorporaram o hábito indígena de comer macaco, inclusive,
às vezes, acompanhado de "pirão d'água" (do tupi,
'pirá''(peixe) + uí (farinha de mandioca)= pirá'ui=pirão). Com
a devastação das florestas, o hábito de se comer macaco
desapareceu ao mesmo tempo que esses bichos tornaram-se cada vez mais raros
e os hábitos alimentares dos brasileiros foram mudando. Foi
então que meu entrevistado disse que até no começo
deste século, ainda se podia encontrar algum colono do interior
de Biguaçu e Governador Celso Ramos que apreciava caçar e
comer macaco. -
E como é que o pessoal comia macaco? Frito? Grelhado?, perguntei. -
Não. Ensopado. -
Ensopado? -
Sim. Eles cortavam a cabeça do macaco e jogavam na sopa para engrossar
o caldo, observou. -
E era gostoso?, indaguei. -
Se era gostoso? Meu Deus do Céu! Era uma delícia.
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