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Uma breve história da língua
tupi, a língua do tempo que o brasil era canibal
"Tupi or not Tupi: that
is the question" Oswald
de Andrade Por Ozias Alves Jr Jornalista/SC No primeiro semestre de 1995,
assisti na televisão uma reportagem interessante do programa Fantástico, da
Rede Globo, sobre a implantação futura da língua Tupi-Guarani como matéria
optativa nas escolas públicas do Rio de Janeiro. Hoje, passados cinco anos, o
projeto não saiu do papel por falta de professores, mas achei a idéia
instigante. Muitos acham a medida um absurdo, outros consideram-na fabulosa tal
como seria a reação do personagem Policarpo Quaresma, do romance de Lima
Barreto intitulado "Triste Fim de Policarpo Quaresma", publicado na
segunda metade do século passado. Para quem não conhece essa obra, Quaresma
era um cidadão extremamente nacionalista que defendeu obcecadamente a idéia da
adoção do Tupi-guarani como língua oficial do Brasil, salientando que o
português deveria ser abolido por tratar-se do idioma dos colonizadores. Essa idéia teve inúmeros
adeptos que foram responsáveis pela publicação de vários dicionários hoje
existentes do Tupi-guarani, principalmente os que ensinam o significado dos
nomes de origem indígena de inúmeras cidades e localidades do Brasil, além de
expressões e outras palavras originárias do idioma nativo de uso freqüente no
português brasileiro. Um dos grandes intelectuais brasileiros que literalmente
" desenterrou" o então falecido idioma tupi foi o profº dr. Aryon
Dall´Igna Rodrigues, da Universidade de Brasília. Trata-se de um lingüista
mundialmente famoso na área indígena, que estuda o assunto há mais de 50
anos. Em 1998, um professor da
Universidade de São Paulo chamado Eduardo de Almeida Navarro, discípulo de
Aryon, lançou um belíssimo livro intitulado " Método Moderno de Tupi
Antigo" (editora Vozes, RJ). Trata-se de um completo manual que ensina
tupi. Além deste livro que, certamente, figurará no rol das mais importantes
obras da história da cultura brasileira, Navarro é também fundador da ONG
Tupi Aqui (que aliás deveria ter uma página na Internet pois nunca consegui
localizar a sede dessa entidade). Nos planos da ONG, está na formação dos
primeiros 100 professores de tupi para atuar nas escolas em que o antigo idioma
indígena do Brasil for dado como disciplina optativa. Vamos para a história do
tupi. O manual de Eduardo Navarro foi baseado, em suas linhas gerais, na
primeira gramática do tupi, aquela escrita pelo padre José de Anchieta, em
1556. Chamava-se "A Arte de Gramática da Língua mais usada na costa do
Brasil". Acabou publicada em 1595, dois anos antes da morte de Anchieta,
pelo tipógrafo Antônio de Mariz, com autorização da Companhia de Jesus.
Tratava-se de um guia lingüístico para os novos jesuítas que assumiriam a
administração das missões religiosas junto aos índios brasileiros,
principalmente os de língua da família tupi-guarani, onde hoje situa-se o
estado de São Paulo. José de Anchieta nasceu em
19 de março de 1534 em San Cristóbal de La Laguna, na ilha de Tenerife, arquipélago
das Canárias, colônia da Espanha situada próxima à costa africana. Veio para
o Brasil em 1553, na frota que conduzia o segundo Governador Geral daquela colônia
na América do Sul, Dom Duarte da Costa (que ficou no cargo de 1553 a 1557). Ele
estava na primeira leva de padres jesuítas da Companhia de Jesus que vieram ao
Brasil como o objetivo de catequisar os índios. Os nativos chamavam-nos de
"avarê". Na época em que o célebre
navegador português, Pedro Álvares de Cabral, aportou em terras brasileiras em
1500, o Brasil tinha nos tupi-guaranis a tribo mais numerosa e poderosa. Os
tupis viviam no litoral brasileiro, de norte a sul do que é hoje o Brasil. Já
seus primos guaranis dominavam as matas do interior, entre as bacias do Paraná
e do Paraguai. Como lembra Waren Dean, em seu livro "A Ferro e Fogo- A história
da Floresta Atlântica do Brasil" (Editora Companhia da Letras, 1994),
tanto os tupis como os guaranis foram tribos que faziam poucos séculos, na época
em que os portugueses descobriram o Brasil, que invadiram a região e
desalojaram outras tribos indígenas, cuja história perdeu-se na poeira dos
tempos. A palavra "Tupi"
significa "o grande pai" ou "líder". Ora, os
"tupis" achavam-se os máximos tanto que chamavam a si mesmos de
"tupis". Já "Guarani" significa "guerreiro". Os
tupis, os primeiros contactados pelos portugueses quando iniciaram sua colonização
no Brasil, dividiam-se em várias tribos cujos nomes registrados pela história
são como elas mesmos chamavam-se ou como seus inimigos apelidaram-nas. Algumas
delas. Os Potiguares (Papa-Camarão)
viviam no Rio Grande do Norte. Mais ao sul, os Caetés (gente da floresta)
(aqueles que devoraram o primeiro bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha
quando o azarado naufragou na costa do nordeste, em 16 de julho de 1556) vagavam
por Alagoas. Os Tupinambás (Tupis Machos) eram os "caras" da Bahia
que também davam o "ar de sua graça" em São Paulo. Já a partir da
altura de Porto Seguro, sul da Bahia, e descendo para o sul, já se encontravam
os Tupiniquins, inimigos mortais dos Tupinambás. Descendo o mapa do litoral
brasileiro, encontravam-se as seguintes tribos: goitacases (os corredores)
(Campos, no Rio de Janeiro- estes não são tupis), tamoios (Os anciãos) (de
Cabo Frio até Angra dos Reis, RJ), guaianases (Os irmãos) (São Vicente, SP),
guaranis (guerreiros) (de Itanhaém até Cananéia, SP), carijós (Os brancos),
que se espalhavam por Cananéia, Santa Catarina até a Lagoa dos Patos, no Rio
Grande do Sul. Fora esses índios (hoje 99%
extintos) que falavam dialetos aparentados do Tupi-Guarani, havia outras dezenas
tribos da mesma família mais para o interior do Brasil, muitas da quais ainda
existentes. Quando os jesuítas chegaram ao Brasil, mais precisamente em São
Paulo, iniciaram seu trabalho de catequização com os índios de fala
Tupi-Guarani, principalmente os tupiniquins e outras tribos amigas aos
primeiros. José de Anchieta, que viveu
44 anos no Brasil, aprendeu o tupi-guarani com os índios guaianases, de São
Paulo. Essa região, que os portugueses deram o nome do famoso missionário
cristão, Paulo, depois convertido em santo (São Paulo), era chamada pelos
tupi-guaranis de "Piratininga", que significa "Peixe Seco"
no idioma deles. Foi na região de Piratininga que os padres jesuítas fundaram
em 1554 um colégio em redor do qual indígenas das redondezas passaram a morar
e muitas crianças nativas freqüentavam as aulas dos padres. Era o nascimento
da cidade de São Paulo, situado em "Pindorama", nome que os índios
chamavam o país que, mais tarde, por influência dos portugueses, passou a ser
denominado "Brasil". São Paulo nasceu em 25 de
janeiro de 1554 num paupérrimo barracão. O acontecimento histórico foi
relatado por Anchieta numa carta em latim enviada a seus superiores na Companhia
de Jesus, na Europa. "A ianuario usque ad praesen, non nunquam plus viginti
(simul enim Pueri Catechistae degebant) in paupercula domo, luto et lignis
contexta, paleis cooperta, quatordecim passus longa, decem lata mansimus".
(Em janeiro, celebramos em paupérrima e estreitíssima casinha a primeira
missa, no dia da conversão do Apóstolo São Paulo e, por isso, a ele dedicamos
nossa casa". Quando os portugueses
passaram a colonizar o Brasil, a partir de 1530, quando chegou a frota do
comandante Martin Afonso de Souza, encontraram um compatriota chamado João
Ramalho, que vivia com os índios guaianases fazia uns 17 anos, não se sabe ao
certo. O português Ramalho foi um marinheiro que naufragou por volta de 1513 na
costa de São Paulo. O destino lhe deu a sorte de se salvar. Acolhido pelos
guaianases, enturmou-se tão bem com eles que chegou a casar com a filha do
cacique Tibiriçá, Bartira, com a qual teve muitos filhos e, inclusive, com
muitas outras índias, no paraíso sexual e liberado que era a sociedade nativa. Apesar de tanto tempo sem
falar português e só convivendo com o tupi-guarani, para surpresa da expedição
de Martim Afonso de Souza, João Ramalho, quando se encontrou com seus
compatriotas, falou-lhes num português impecável que o tempo não tirou a fluência. A circunstância do encontro
ocorreu quando Martim Afonso de Souza encontrava-se em São Vicente, vila então
recém fundada por aquele comandante português fazia uns dois anos (1532).
Martim foi informado que uma horda de índios aproximava-se do local. Os
portugueses prepararam-se para a batalha. Lá chegando, João Ramalho
dirigiu-se em português com palavras de boas vindas. Ora, João Ramalho ajudou
muito os portugueses. Para começar, ensinou muitos compatriotas seus a língua
indígena. Por sua influência, os tupiniquins auxiliaram os recém chegados
portugueses a abrirem clareiras na floresta para a instalação das primeiras
vilas lusas no Brasil. Além disso, por ser genro de Tibiriçá, Ramalho era
parente de um bocado de índios das redondezas, que tornaram aliados dos
portugueses contra outras tribos hostis, por consideração a João. Os
guaianases, os únicos índios da região que não eram canibais, tornaram-se tão
amigos dos portugueses que muitos deles converteram-se ao catolicismo, inclusive
o genro de Ramalho, Tibiriçá, que passou a se chamar "Martim Afonso"
(em homenagem ao comandante Martim Afonso de Souza) e a esposa do aventureiro,
Bartira, que ganhou o nome cristão de "Isabel". Havia outro náufrago português
conhecido de Ramanho que vivia entre o índios ururaís, amigos dos guaianases.
Chamava-se Antônio Rodrigues que convenceu o cacique daquela tribo, Piquerobi,
a viver em paz com os portugueses. Nos primeiros anos em que se
instalaram no Brasil, os portugueses, que não passavam de alguns "gatos
pingados", tornaram-se amigos de milhares de índios ferozes como os
guaianases, os guarulhos (daí a origem do nome da cidade de Guarulhos, na
Grande São Paulo), os maramomis e os ururaís, os quais foram de grande valia
para dominar as outras tribos que se recusaram a aceitar a dominação dos
europeus. Ramalho e seus índios
ajudaram os portugueses a fundar a vila de Santo André da Borda do Campo (hoje
a industrial Santo André, no ABC paulista). O primeiro governador geral do
Brasil, Tomé de Souza (1549-1553) nomeou Ramalho como capitão da nova vila. Se
não fosse a ajuda de Ramalho, a vida dos portugueses no começo da colonização
do Brasil não teria sido fácil, quando não impossível. Foi nesse grupo-
portugueses e guaianases- que começou a surgir o povo brasileiro. Ora, os
portugueses que chegaram ao Brasil na época não trouxeram mulheres de seu país.
Portanto, para saciar suas necessidades sexuais, juntaram-se com as índias.
Logo muitas delas engravidaram e deram a luz a uma multidão de crianças mestiças,
que eram chamadas de "mamelucos" e mais tarde de "caboclos"
(termo este último em língua tupi significa "gente do mato"). São
entre essas crianças que surgirão os "Bandeirantes", os caçadores
de índios e pedras preciosas cujas andanças ampliaram o mapa do Brasil. Quando se fala
"brasileiro" há quem utilize o termo "tupiniquim" para
expressar algo "brasileiro legítimo". Existe um livro famoso chamado
"Crítica da Razão Tupiniquim" (Editora Mercado Aberto- Porto Alegre
(RS), 1984), de Roberto Gomes. "Tupiniquim" era o nome de uma das
tribos do Brasil, falante do tupi-guarani. Aliados dos portugueses, estes índios,
amigos dos guaianases, eram arqui-rivais dos tupinambás. Estes últimos
uniram-se aos franceses e tamoios na guerra contra os lusitanos. Os franceses, comandados por
Villegaignon, que os índios chamavam de "Páia Colá" (Pai Colá),
fundaram em 1555 a colônia França Antártica, onde hoje é a cidade de Rio de
Janeiro, na época pleno território português, de acordo com o velho tratado
de Tordesilhas. Os invasores ficaram no Brasil 12 anos e, durante esse tempo,
envolveram-se numa intensa guerra contra os portugueses e seus aliados indígenas
liderados pelos tupiniquins. Antes da invasão, eles já mantinham intenso
contrabando de pau-brasil. Por outro lado, os tupinambás,
tamoios e outras pequenas tribos uniram-se numa confederação contra os
portugueses, que acabou sendo chamada de "Confederação dos Tamoios".
Esses índios detestavam os portugueses os quais eram chamados de "tapuitinga"
(bárbaros brancos), A Confederação dos Tamoios foi uma longa e desgastante
guerra travada no litoral brasileiro entre as décadas de 1540 a 1560. Motivo:
desde que se instalaram no país, em 1531, os portugueses atacavam aqueles índios
para transformá-los em escravos nas plantações de cana-de-açúcar de São
Vicente (São Paulo) e Pernambuco. "Ao chegarem Nóbrega e
Anchieta ao Brasil, para o grande apostolado, já encontraram os índios de todo
o litoral contaminados pelo ódio ao estrangeiro que os viera desalojar de suas
tabas, raptando-lhes as mulheres e escravizando-lhes os prisioneiros. Não havia
possibilidade fácil, imediata, de transformá-los em amigos. Anchieta, pelos
escritos deixados, jamais considerou os índios em benevolência",
salientou Joaquim Thomaz em seu livro "Anchieta" (Página 32,
Biblioteca do Exército, Coleção General Benício, Vol. 191. 1981, RJ). Já John Manuel Monteiro, em
seu livro "Negros da Terra- Índios e bandeirantes nas origens de São
Paulo"(Companhia das Letras, 1ª edição, 1994), observou: "Em 1548,
segundo um relato da época, a capitania (de São Paulo) já dispunha de seis
engenhos de moer cana e uma população escrava superior a 3 mil cativos. Na
procura por trabalhadores indígenas, os colonos buscavam suprir-se,
inicialmente, de duas maneiras: através do escambo ou da compra de cativos. Na
primeira forma de recrutamento, os portugueses ofereciam ferramentas, espelhos e
bugigangas aos chefes indígenas na expectativa de que estes orientassem mutirões
para as lavouras européias. Embora útil na derrubada das
matas para o preparo das roças, esta forma mostrou-se inadequada, esbarrando na
aparente inconstância dos índios. Na segunda forma de recrutamento, os
portugueses procuravam fomentar a guerra indígena com o intuito de produzir um
fluxo significativo de cativos que, em vez de sacrificados, seriam negociados
com os europeus como escravos". (Op. cit. págs. 30 e 31).
"Os portugueses acreditavam que o aumento de prisioneiros de guerra
acarretaria a formação de um considerável mercado de escravos, uma vez que
mesmo a legislação colonial sancionava esta forma de adquirir
trabalhadores" (Pág. 33). Oito anos antes da invasão
francesa, apareceu no Brasil um alemão chamado Hans Staden, cujas aventuras
poderiam inspirar um belo filme de ação nas mãos de um Steven Spielberg ou de
algum talentoso cineasta (se botar na mão de brasileiro, vira
"suruba"- Aliás, "suruba" é uma palavra do tupi-guarani
que significa "bom", bem diferente do significado que possui hoje no
português brasileiro). (Aliás, mais uma notinha. O falecido ex-presidente da
república, Jânio Quadros, quando se candidatou a prefeito de São Paulo em
1982, usava como slogan de sua campanha política- "Este é suruba".
Teve gente que não entendeu e pensou "naquilo", o que valeu uma
reportagem da revista Veja explicando que "suruba" significava apenas
"bom"). Staden embarcou em Lisboa em
29 de abril de 1547 num navio português rumo ao Brasil. Naufragou no litoral de
São Paulo em 1548, mas conseguiu sobreviver e chegar a uma aldeia portuguesa.
Acabou tornando-se guarda de um forte dos portugueses em Bertioga, litoral
paulista, a pedido do então Governador-Geral do Brasil, Tomé de Souza. Certo dia no final de 1548,
Staden saiu do forte atrás de comida. Temia encontrar os índios tupinambás,
mas embrenhou-se na mata bem armado. Eis que lhe ocorreu o azar.
Escondido na mata, um grupo de tupinambás supreendeu Hans, que havia
afastado-se um pouco dos seus acompanhantes. Os índios prenderam-no sem que a vítima
pudesse esboçar reação e levaram-no para a aldeia onde iriam devorá-lo.
Afinal, os tupinambás eram temíveis Parus ou Paris. i.e., índios canibais.
Achavam que Staden, visto no forte, era português, portanto inimigo. Na cultura
deles, comer a carne do inimigo dava-lhes força e era o maior ato de vingança.
Aliás, os índios da família tupi-guaranis eram canibais inveterados. A
"curtição" deles era "encher a cara", fazer guerras contra
as tribos vizinhas e conseguir prisioneiros para matá-los num banquete, ou
seja, participar de bacanais de carne humana, sexo e birita, como bem lembra o
padre José de Anchieta: "Toda a costa marítima de Pernambuco até além
de São Vicente, é habitada por índios que, sem exceção, comem carne humana,
nisso sentem tanto prazer e doçura que frequentemente percorrem mais de 300
milhas quando vão à guerra. E, se cativarem quatro ou cinco dos inimigos,
regressam com grandes vozearias, festas e copiosíssimos vinhos que fabricam com
raízes, e os comem de maneira que não perdem nem sequer a menor unha". (
citado no artigo "Anchieta. Os Passos de um aventureiro", de Liane
Camargo de Almeida Alves, Revista Terra, Ano VI, nº 8, agosto 1997, edição
64, página 34). Prevendo a sorte, Staden
desesperou-se e, num tupi-guarani sofrível, dizia que não era português. Em vão.
Os captores levaram-no à aldeia. Chegando lá, Hans Staden foi obrigado a dizer
a seguinte frase: "Ajú ne xé peé remiura" (Aqui vem sua comida). Na
entrada do lugarejo, levou uma surra homérica dos índios que gritavam: "Xa
anama pepika aé" "Com este golpe vingo os parentes que os teus amigos
mataram". Os tupinambás, já dançando
e tomando caju-i (bebida alcóolica extraída da fermentação da mandioca),
preparavam-se para esquartejá-lo. Os pedaços seriam assados num grande
fogueira e distribuídos para a tribo no banquete canibal. Vejamos a descrição
sobre o macabro espetáculo. "Um guerreiro era escolhido para a paulada de
misericórdia (com um porrete de madeira dura chamado "muçurana), que
deveria esmigalhar os miolos da vítima. Ofendiam-se mutualmente com palavras
cruéis e a vítima mal podia defender-se, pois as cordas lhe tolhiam os
movimentos. 'Em morrendo este preso, lê-se em Frei Salvador, logo as velhas o
despedaçam e lhe tiram as tripas e fressura, que mal lavadas cozem para comer,
e reparte-se a carne por todas as casas e pelos hóspedes que vieram a esta
matança, e dela comem logo assada e cozida, e guardam alguma, muito assada e
mirrada, a quem chamam moquém, metida em novelos de fios de algodão e posta em
caniços ao fumo, para depois renovarem o seu ódio e fazerem outras festas, e
do caldo fazem grandes alguidares de migas e papas de farinha de carimã, para
suprir na falta de carne, e poder chegar a todos", comentou Joaquim Thomaz
em seu livro "Anchieta" (Bibliex, 1981). Staden era ruivo. Tanto seus
cabelos e sua longa barba tinham coloração vermelha bem acentuada. Alguns dos
índios tupinambás indagaram-se. O prisioneiro era um "Peró"
(Português) mesmo? Será que não podia ser francês? Afinal, os portugueses
eram morenos, com cabelos e barbas pretos. (Os franceses eram chamados de "Aiurujaba"
(Papagaio Amarelo), em alusão ao fato de eles serem muito falantes e amigos.
"Perós" ou "Perós-angaipá" vêm em alusão à abundância,
entre os portugueses, de " Pedro" e "Pero"). "É de se notar que não
andavam em muitos bons termos as relações entre índios e portugueses, por
serem estes, quase sempre, de trato rude, assaz arrogantes. Os franceses, por
saberem dessas desavenças, utilizavam-se de uma política de extrema indulgência.
Enquanto o português aprisionava o aborígine para escravizá-lo, o francês
apenas o tratava como amigo, como comerciante. O que interessava (aos franceses)
era o pau-de-tinta (Pau Brasil), o algodão, as penas, as aves, os animais
raros", observou Joaquim Thomaz na obra "Anchieta" (Pág. 61,
Bibliex, 1981). Hans aproveitou o momento da
excitação para dizer que era francês. Uns índios, dizendo que ele era
português porque tinham-no visto no forte dos lusitanos, queriam matá-lo
imediatamente, mas o chefe da tribo disse não e que esperaria encontrar-se com
os franceses para certificar-se se o prisioneiro era compatriota deles. Eis que iniciou o longo
cativeiro de Staden entre os tupinambás, sofrendo a angústia de ser, de uma
hora para outra, morto e devorado por aqueles canibais. Nesse período, Hans viu
outros prisioneiros índios- tupiniquins e carijós- serem mortos e
esquartejados para os banquetes dos tupinambás. Frio na barriga era pouco. Tentou fugir em vão algumas
vezes, mas sempre era recapturado pelos nativos para os quais dava as mais
criativas desculpas para não vê-los furiosos. Ficou desesperado quando,
certa vez, um francês visitou a tribo e foi levado a Hans pelos indígenas.
Eles quiseram verificar se o prisioneiro era compatriota do "aiurujaba".
Staden não sabia falar francês e não entendia nada que o visitante lhe
perguntava naquele idioma. Então, o francês, dirigindo-se em tupi-guarani aos
nativos, falou que o prisioneiro era português e que não deveriam perder mais
tempo em adiar em matar o capturado para comê-lo no próximo banquete. Imaginem a cena. Um magricelo
alemão cabeludo, falando nervosamente, desta vez num quase fluente tupi, que
aprendeu durante o longo cativeiro, tentando explicar aos canibais que o francês
estava mentindo e que era alemão, um "tipo" de europeu que os
tupinambás nunca haviam escutado falar. Afinal, naquele tempo, nunca havia
estado um "alemão" no Brasil, com exceção de um proprietário de
engenho de cana-de-açúcar em São Vicente. Entre os argumentos que Hans
apresentava aos índios para não comê-lo, estava a de que "ele era muito
magro e sua carne muito ruim". Sabe lá Deus como Staden
conseguiu adiar a execução. Até passar-se por "mágico poderoso",
Hans meteu-se na encenação. Passaram-se nove meses quando a tribo, mudando-se
para um acampamento próximo ao mar, foi visitada por uma expedição francesa,
cuja caravela ancorou na praia. Falando aos franceses com ajuda de um intérprete
daqueles europeus que conhecia a língua indígena, conseguiu convencê-los a
levá-lo embora em direção à Europa. Conseguiu. Final feliz naquele ano de
1549. Alívio inesquecível. Foi tão inesquecível que,
retornando a sua terra natal, Staden escreveu um livro intitulado " Relação
verídica e sucinta dos usos e costumes dos Tupinambás", que nas edições
atuais tem o nome de "Viagem ao Brasil", relatando suas aventuras com
aqueles índios canibais. Publicada em 1555, a obra tornou-se best-seller na
Europa, traduzida para incontáveis línguas como também inúmeras foram suas
edições nos mais variados idiomas. Era um filme de "Spielberg" da época.
Além de ser um incrível documento sobre o Brasil em seus primórdios, o livro
de Hans Staden registrou também informações sobre a língua e os costumes dos
tupinambás. Décadas depois, estes nativos acabariam totalmente exterminados não
só pelas armas de fogo dos portugueses, mas pelas doenças que os europeus
transmitiram, contra as quais os índios não tinham defesa imunológica. Como
lembra John Manuel Monteiro, "surtos consideráveis de sarampo e varíola
irromperam em São Vicente (São Paulo) durante a guerra de 1560-3, dizimando e
desmoralizando a população nativa". (Livro "Negros da Terra".
op cit, pág. 39). A primeira grande epidemia que atingiu os índios ocorreu em
1554. Antes de os franceses terem
sido expulsos definitivamente do Brasil, o padre José de Anchieta, considerado
santo e que recebeu o título de "Apóstolo do Brasil", foi decisivo
para a vitória dos portugueses sobre seus inimigos europeus e indígenas.
Anchieta e seu colega Manoel da Nóbrega conseguiram negociar, com líderes
tamoios e tupinambás, uma paz com os indígenas inimigos dos portugueses.
Afinal, em 10 de julho de 1562, os índigenas hostis- os tamoios- atacaram em
massa São Paulo que por pouco não foi varrida do mapa. Colonos portugueses e
índios tupiniquins e de outras tribos aliadas comandadas por João Ramalho e
seu sogro Tibiriçá, mesmo em menor número, conseguiram defender a importante
cidade para os interesses da Coroa Lusitana. O jesuíta Manoel da Nóbrega,
superior da ordem no Brasil, era contra a escravidão dos índios. Sabia que a
Confederação dos Tamoios surgiu pela revolta dos nativos contra as investidas
dos portugueses para transformá-los em escravos nas plantações de cana-de-açúcar
de São Vicente e do nordeste brasileiro. Decidiu ele negociar a paz com os
chefes da Confederação dos Tamoios. A guerra generalizou-se. Nóbrega convenceu José de
Anchieta a realizar uma viagem rumo a Iperoig para conferenciar com os líderes
dos tamoios. Partiram de São Vicente no navio de um navegador genovês que
morava na vida, José Adorno. Chegando a Iperoig, perto de onde hoje é a cidade
paulista de Ubatuba, os dois jesuítas foram cercados pelos tamoios, que se
mostraram hostis. Então, Anchieta, num tupi-guarani impecável, saudou os índios
com promessas de paz e de amizade. Os ânimos apaziguaram-se. O chefe dos tamoios, Caoquira,
recebeu os padres que ficaram hospedados em sua própria oca. Logo depois, os
padres, acompanhados do navegador José Adorno, sentaram-se em torno do círculo
junto aos índios e, assim, iniciaram as negociações de paz. Anchieta serviu
de intérprete a Manoel da Nóbrega, que não sabia falar tupi. Caoquira, como
porta-voz de seu povo, pôs-se a falar e enumerou todas as queixas dos tamoios
contra os portugueses. Contou e repetiu não se sabe quantas vezes, por vários
dias, a história dos feitos dos bravos guerreiros tamoios do passado e
enalteceu a coragem de seus compalheiros. Nóbrega e Anchieta escutaram
pacientemente o interminável rosário de queixas e o relatos dos feitos heróicos
dos índios. Caoquira mandou chamar todos
os "morubixabas" (chefes) das tribos aliadas à Confederação dos
Tamoios para negociar a paz com os dois jesuítas. Enquanto se esperava a
chegada deles, os padres passaram o tempo intensificando a amizade com os
tamoios. Improvisaram um altar onde Nóbrega rezava missa todos os dias enquanto
Anchieta explicava aos índios em tupi cada passo da cerimônia e a doutrina
cristã. Logo José passou a ensinar as crianças a cantarem vários hinos católicos
que compusera em tupi. As crianças aprenderam as músicas rapidamente e as
cantorias atrairam a curiosidade dos adultos. Logo chegaram os chefes,
entre eles Cunhambebe e Pindobuçu, que trouxeram suas tribos inteiras! Parecia
que estava indo tudo bem para o acordo de paz, eis que apareceu o cacique Aimberê.
Este passou a criticar os outros caciques por terem acolhido os jesuítas e
brigava alegando que qualquer acordo com os portugueses era perda de tempo.
Aimberê propôs o fim à conferência e sugeriu que Nóbrega e Anchieta fossem
mortos e devorados, antes das tribos retomarem a longa guerra contra os
portugueses e seus aliados tupiniquins. No entanto, alguns caciques
discordaram de Aimberê e a discussão prosseguiu até que se chegasse a um
acordo entre os índios. Aimberê, em nome da Confederação dos Tamoios,
apresentou aos jesuítas como condição para o acordo de paz, que os
portugueses entregassem três caciques tupiniquins para que fossem sacrificados
num ritual canibal. Anchieta interveio. Com muita
calma e paciência, Anchieta explicou que a proposta era inaceitável. Aimberê
não cedia; os jesuítas também. Então, o velho chefe Pindobuçu, mais
ponderado que Aimberê, interveio buscando uma proposta de conciliação. Nesse momento, Nóbrega propõe
um tempo para consultar as autoridades portuguesas. Eis que surgiu a idéia de
uma comissão da Confederação dos Tamoios fosse negociar com o governador
geral do Brasil, Mem de Sá (1558-1572), em São Vicente. Aimberê ofereceu-se
como emissário. Nóbrega pôs-se a escrever uma carta para o governador Nem de
Sá recomendando bom tratamento à comitiva de Aimberê e que se negociasse a
paz com aqueles índios, evidentemente sem atender a proposta de lhes serem
dados os três caciques para o sacríficio. Os jesuítas pediram a José Adorno,
o navegador que os levou até Iperoig, que levasse em seu navio a comitiva dos
tamoios até São Vicente, o que foi prontamente atendido. Lá chegando, os índios
foram bem recebidos pelas autoridades portuguesas. Enquanto isso, Nóbrega e
Anchieta continuaram em Iperoig. As opiniões entre os índios dividiram-se. Uns
achavam que os padres deveriam ser mortos e outros, pelo contrário. Certo dia,
enquanto os dois jesuítas estavam caminhando na praia, um grupo de índios em
canoas, tendo a frente o cacique Paranapuçu, aproximou-se em remadas rápidas
dos religiosos. Gritavam intensamente não escondendo a intenção de matá-los.
Nóbrega e Anchieta puseram-se a correr. Nóbrega era um homem já idoso e não
aguentou a correria. Estatelou-se no chão quando atravessava um riacho.
Anchieta puxou o amigo carregando-o nos ombros. Enquanto isso os índios
aproximavam-se furiosamente. Os dois religiosos chegaram
à cabana do cacique Pindobuçu, mas o amigo não estava em casa. Nesse momento,
os índios os alcançaram e, diante da morte iminente, os padres ajoelharam-se,
abraçaram-se e passaram a rezar em voz alta. A cena assustou os perseguidores
que arriaram as armas. Anchieta tomou coragem e levantou-se dando aos gritos um
sermão em tupi. Os índios deram a volta e mandaram-se. Semanas, meses passaram-se e
nada do retorno de Aimberê e sua comitiva. Nóbrega decidiu voltar
sozinho para São Vicente. Anchieta ficou com os índios para que eles não se
enfurecessem e que as negociações de paz não cessassem por ali. Sozinho, Anchieta passou
muitos dias escrevendo milhares de poemas em latim em homenagem à Virgem Maria
nas areias da praia de Iperoig. Rabiscava na praia porque não tinha papel.
Escreveu ao todo 4.172 versos em latim que o prodigioso padre decorou-os um a
um. Meses mais tarde, o padre transcreveria-os em papel com o título de
"De Beata Virgine Dei Matre Maria" (Da Virgem Santa Maria Mãe de
Deus). Várias vezes os tamoios,
como prova de amizade, lhe ofereceram mulheres para "noitadas de
amor", mas Anchieta as recusou como o capeta escapa da cruz. Os nativos
zombavam dele por causa da recusa. Sobre isso, escreveu mais tarde o padre:
"as mulheres (índias) andam nuas e não sabem negarem-se a ninguém, mas
até elas mesmas cometem e importunam os homens, jogando-se com eles nas redes,
porque têm por honra dormirem com os cristãos". E queixou-se: "Estou
tão mal acompanhado, entre tantas ocasiões de pecado e morte, cercado de bárbaros,
nos quais a natureza não conhecia pejo e a honestidade não era
conhecida". ("Anchieta", in "Grandes Personagens de nossa
História", Vol. 01, Editora Abril Cultural,
1969). E os perigos não cessavam.
Certa vez, um cacique ameaçou-o de morte porque não conseguia pegar nenhuma caça
em suas armadilhas na floresta. Então, Anchieta, firme, ordenou-o a voltar
denovo às armadilhas, onde o índio, surpreso, verificou que havia vários
animais capturados. Outra vez, a tribo recebeu a
notícia que um dos integrantes da comitiva de Aimberê, que estava negociando a
paz com os portugueses, havia sido assassinado pelos brancos. Irados, os índios
decidiram vingar-se executando Anchieta. Mas a ameaça nem chegou a ser
concretizada quando, inesperadamente, o suposto assassinado apareceu na aldeia.
Apenas havia fugido, nada mais. Em função da demora da
volta de Aimberê, o cacique Cunhambebe decidiu que Anchieta deveria retornar a
São Vicente. O próprio chefe o conduziu no regresso. Afinal, conta a lenda, o
padre Anchieta foi visto levitando e dando alimentos na boca de pássaros que
pousavam em seus braços. Os tamoios ficaram impressionados e libertaram o
padre, pensando ser um feiticeiro. Em função desses fatos e seu trabalho apostólico
no Brasil, José de Anchieta já foi indicado no Vaticano para ser transformado
em santo. Em São Vicente, o padre foi
recebido com festa ao mesmo tempo que os portugueses chegaram a um acordo com a
Confederação dos Tamoios. A paz estava selada depois de sete meses de negociação
(novembro de 1563), pelo menos com os caciques que conferenciaram com Nóbrega e
Anchieta. Outros chefes, de tribos mais afastadas, continuaram a guerra contra
os portugueses. A guerra deu um pequeno alívio,
mas as escaramuças retornaram, principalmente depois que o governador Nem de Sá,
auxiliado por seu sobrinho Estácio de Sá, intensificou os ataques contra os
franceses no Rio de Janeiro, que recrutaram os tamoios em sua defesa. Apesar de
Nóbrega e Anchieta tentarem persuadir os índios aliados dos tamoios a não
prosseguirem a guerra, mas paz logo foi quebrada. Sem outra alternativa, os jesuítas
recrutaram índios tupiniquins e de outras tribos amigas dos portugueses tanto
de São Vicente como do norte, Espírito Santo, para lutar ao lado das tropas de
Estácio de Sá. A batalha decisiva ocorreu em
janeiro de 1567 quando os portugueses, com milhares de aliados tupiniquins
trazidos do Espírito Santo, venceram os franceses e os tamoios. Numa das
batalhas, Estácio de Sá, hoje nome de importante escola de samba no Rio de
Janeiro (também de universidade particular), morreu flechado no olho. Antes,
como se relata, Estácio viu, no meio da batalha, São Sebastião. Daí a razão
de os portugueses terem dado o nome de São Sebastião para o Rio de Janeiro,
cidade que os portugueses fundaram na região após expulsar os franceses. Sobre a presença dos
franceses no Rio de Janeiro, há dois livros do século XVI. Um foi escrito pelo
padre André Thevet. O livro chama-se " Singularidades da França Antártica".
Já outro é de autoria de Jean de Léry. Intitula-se " Viagem ao
Brasil". Nesta obra, consta um longo diálogo em tupi. Trata-se do primeiro
registro escrito do idioma Tupi. Jean de Léry, que esteve alguns meses no
Brasil no Rio de Janeiro quando era ocupado pelos franceses, não falava o
idioma indígena, mas registrou, com ajuda de um intérprete, uma negociação
com um índio tupinambá. Esse diálogo, registrado em seu livro de memórias,
tornou-se um achado linguístico importantíssimo para a reconstituição do
tupi como era falado nos primórdios do Brasil. Fora o importante papel na
política do Brasil nos seus primórdios, ao conseguir a paz com os índios da
Confederação dos Tamoios, José de Anchieta foi o primeiro teatrólogo de
nosso país. Afinal, escreveu as primeiras peças de teatro encenadas no Brasil.
Em 20 de janeiro de 1575, houve a primeira encenação de peças de Anchieta, em
São Paulo. Mas sua obra teatral mais famosa é a peça "Jesus na festa de
São Lourenço", encenada na Igreja de São Lourenço, em Niterói, em
frente à então fazia poucos anos fundada Rio de Janeiro. A primeira apresentação
desta peça ocorreu em 10 de agosto de 1583. Anchieta usou o teatro com
objetivos pedagógicos. Afinal, os tradicionais métodos de ensino como livros,
leitura e exercícios escritos não atraíam tanto os índios, que apreciavam
mais cantos, danças e poesia. Na peça citada, o padre misturou personagens da
liturgia cristã e da história greco-romana com a da mitologia indígena. O
enredo misturava anjos e demônios, uma história em que o Bem venceu o Mal. O
atores que encenaram eram em sua maioria índios, principalmente crianças. A peça,
com cinco atos, era falada em espanhol, tupi-guarani e português; tudo em
versos. O primeiro, em espanhol, era:
" Por Iesú, mi salvador.// Que muere por mis mancillas.// Me aso en estas
parrillas.// Con fuego de su amor.//". Já o ato em tupi iniciava-se assim:
Perory.// Xe rayretá, xe ri.// Ko aikó pepysyrómo.// Ajur ybáka sui.//
Perokybyã rupi.// jepi ñe pepytybómo.//" (Tradução de Maria de Lourdes
de Paula Martins, citada no livro " Anchieta", de Joaquim Thomaz:
"Alegrai-vos, filhos meus, por mim. Aqui estou para vos proteger. Vim do Céu
para junto de vós a ajudar-vos sempre"). Já os versos em português
misturavam-se aos de castelhano. Não se sabe por que Anchieta usou espanhol em
seu teatro, ainda mais para os índios, quase todos falantes apenas do tupi. O Tupi-guarani não formava
uma língua uniforme. Os índios desse tronco étnico, os primeiros a serem
contactados pelos portugueses que chegaram ao Brasil, falavam inúmeros dialetos.
Para uniformar o idioma, os padres jesuítas que montaram aldeias ou "missões"
arrebanhando os nativos para o ensino da fé católica acabaram influenciando os
índios Tupi-guaranis "domesticados" a falarem um tupi padrão e
simplificado. O objetivo era eliminar os dialetos. Foram bem sucedidos. O tupi
patronizado ganhou o nome de "Nheengatu", que significa "Língua
Boa". Também é conhecido por "Abanheenga", que significa
"Língua de Gente". Os nativos que não falavam "nheengatu"
eram "nheêgaiba" (gente de língua ruim), que para os ouvidos
portugueses soava a "Carainhêe". O Nheengatu é a língua ainda hoje
falada na Amazônia. Até o final do século XVII,
a língua "oficial" do Brasil era o Tupi-guarani misturado com português.
De cada três brasileiros, dois só falavam Tupi-Guarani. Mas em 1759, sobre
influência do Marquês de Pombal, o governo português baixou um decreto
proibindo o uso do idioma "híbrido" ao qual imbutia a acusação de
que estava prejudicando as comunicações na colônia brasileira e impondo punições
para quem não usasse o idioma português. Foi assim que, à força, o
tupi-guarani foi tirado de circulação ao longo do tempo. Se não houvesse essa
medida, o Brasil seria um país bilíngue cuja população usaria o português e
o tupi-guarani, tal como hoje ocorre no Paraguai em que o povo de lá exprime-se
em espanhol e guarani, uma língua parente do tupi. Aliás, para muitos
estudiosos, Tupi-Guarani e Guarani são a mesma língua. Diferenciam-se em algumas
palavras e pronúncia, mas essencialmente são duas línguas compreensíveis
entre si tal como um português entende sem nenhum problema castelhano falado
pausadamente. "A língua em que Anchieta catequizava o gentio brasílico é
a mesma em que Montoya catequizava o gentio paraguaio", escreveu Couto de
Magalhães, em seu livro "O Selvagem"(3ª ed., 1935). Não é bem assim. As línguas
não são tão parecidas assim. Pude constatar por experiência própria que os
falantes do guarani têm algumas dificuldades para entender o tupi, mas nada que
a comunicação torna-se inviável. Afinal, o tupi brasileiro e do guarani
paraguaio são dialetos do mesmo idioma. Ganharam o status de línguas
diferentes apenas por questões geográficas. Lembro-me do relato de um
senador amazonense chamado Pedro Luís Simpson (1840-1892). Este foi oficial do
exército brasileiro na guerra do Paraguai (1865-1870). Conhecedor de nheengatu
(tupi-guarani), ele entendia perfeitamente o guarani falado pelos soldados
paraguaios prisioneiros interrogados por ele no idioma indígena brasileiro. Simpson foi autor de
"Gramática de Língua Brasílica". Aprendeu a língua indígena
durante sua infância, em Manaus, Amazonas. Quando garoto, brincava com crianças
índias. O nheengatu (tupi-padrão) era o idioma que os padres jesuítas
influenciaram os índios a falarem nas missões organizadas por eles na Amazônia.
Em 1759, o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas do Brasil. Por quê? Entre outros
motivos, porque os padres eram contra a escravização de índios. Colonos
portugueses tinham secular queixa contra os jesuítas por sempre atrapalhá-los
quando atacavam a população nativa em busca de escravos. Afinal, escravos
negros, os quais eram chamados pelos índios de "Tapuya" ou "Tapiúnas"
(Estranhos pretos), custavam alto. Por isso, para muitos colonos, a solução
era escravizar índios. Pombal também temia a força que os jesuítas haviam
conquistado nos últimos séculos com a fundação de suas "missões"
amazônicas. Estas acabaram fechadas e os índios dispersados. No entanto, até hoje o
"nheengatu" da época dos jesuítas é língua franca entre os indígenas
da Amazônia. A briga dos portugueses
contra as missões jesuíticas vinha desde o século XVII. Se com as missões
organizadas por padres portugueses a política foi a de fechamento, com as dos
espanhóis tornou-se guerra, isso mais de um século antes de Marquês de
Pombal. A partir já das últimas décadas dos anos 1500, os bandeirantes
paulistas passaram a percorrer o interior do Brasil em busca de escravos índios
e logo no século seguinte atingiram a região das missões indígenas que jesuítas
espanhóis organizaram onde hoje é o sul do Brasil, região esta que pertencia
à Espanha, de acordo com o antigo tratado de Tordesilhas. Os bandeirantes
paulistas conseguiram destruir as missões e dispersar 100 mil índios guaranis,
conforme conta o historiador e linguista Afonso Freitas, na página 11 de seu
livro "Vocabulário Nheengatú" (Companhia Editora Nacional, São
Paulo- 1976). " Em 1611, os paulistas,
com o intuito visível de conquistar braços para a lavra das minas de Araçoiaba,
mas, indiscutivelmente, no esforço de afastar o domínio espanhol, que se
estendia do Paranapanema, iniciaram a série de ataques que devia prolongar-se,
com intermitências, até 1629, mas tiveram de retroceder, em sua primeira
tentativa, ante as forças muito mais numerosas do governador D. Antônio Anasco,
que as atacou de surpresa. Não desanimaram, entretanto, os paulistas, com esse
primeiro revés e nos anos seguintes renovaram o ataque às reduções, sempre
com êxito vário, até que, em 1629, comandados por Antônio Raposo e Manuel
Preto, conseguiram a dispersão dos 100 mil indígenas, que constituíam a
população do império e, com ela, o afastamento dos limites da capitania para
as barrancas do Paraná". *** Esquecido na poeira do
tempo, o tupi-guarani passou a ser alvo de culto entre intelectuais brasileiros
que sonhavam com o resgate do idioma indígena. Em julho de 1925, Afonso A. de
Freitas, autor do livro "Vocabulário Nheengatu" publicado post mortem
em 1976 pela Companhia Editora Nacional, São Paulo, criou o primeiro curso de
tupi-guarani no Instituto Histórico de São Paulo, do qual era presidente. O curso, ministrado
gratuitamente às quartas-feiras, era dado por Juan Francisco Recalde. "Não
teve longa duração, entretanto, esse curso. (...) Hoje, para honra da cultura
paulista, está São Paulo dotado definitivamente de um cadeira de língua
tupi-guarani, criada em maio de 1934 pelo governo do estado, para a sua
universidade. Foi nomeado, acertadamente, para regê-la, o tupinólogo Plínio
Ayrosa", lembra Afonso de Freitas Júnior, filho do idealizador do projeto. O tupi-guarani influenciou
profundamente o português do Brasil. Não foi apenas na incorporação de
vocabulário indígena, mas até mesmo influenciou na sintaxe no idioma lusitano
no Brasil. Aliás, vale lembrar que os cablocos do estado de São Paulo, em sua
grande maioria, só falava tupi até a primeira metade do século XIX. "A
ligação do elemento colonizador com o aborígene deu-se tão íntima e intensa
que, por muito tempo, o uso do idioma guarani foi corrente no seio da população
civilizada de São Paulo, notando-se, ainda hoje, sua poderosa influência no
falar paulista: a circunstância dos atuais caipiras dos arredores de Conceição
dos Guarulhos preferirem dormir em esteiras, no chão, desprezando o uso de
cama, é uma clara reminiscência das velhas usanças dos murumimis, os quais,
como é sabido, não faziam uso de redes", salientou Afonso Freitas. Outro intelectual brasileiro
contemporâneo que se dedicou ao estudo do tupi-guarani foi Couto de Magalhães.
Tendo estudado durante 30 anos tupi e guarani do Paraguai, o intelectual
traduziu cópias manuscritas de canções em tupi compostas por Anchieta. Os
manuscritos encontravam-se nos arquivos do Vaticano. Dom Pedro II, poliglota que
sabia falar até tupi, conseguiu cópias desses manuscritos, dadas a ele de
presente quando visitou o Vaticano. As cópias do precioso material, intitulado
"Nheenga apiàba pé avaré Joseph Anchieta recê "(Fala aos índios
pelo Padre José de Anchieta) caíram nas mãos de Magalhães décadas depois, já
no século XX. Além de canções, o lendário padre compôs orações católicas
no idioma indígena como esta " Tupã rerobia re tebo// Teco puero neobopa//
Ageirira yniye rebo// Sancta Maria cupé// O mi by porangueté// Tomoye recoab
orebo//" (Eu peço e pedirei à Virgem Maria e ao menino formoso que perdoe
nós todos". Vamos ver alguns exemplos da
influência do tupi-guarani no português brasileiro. Temos a expressão "Tá".
É uma contração do verbo "Estar" na 3ª pessoa do singular? Muita
gente pensa que sim, mas não é. É uma expressão do tupi incorporada na fala
brasileira. Vejamos o que explica Afonso Frietas. "O tupi-guarani não
sabia modular a voz em interrogativa: suprindo tal deficiência, sempre que
perguntava incluía na frase as partículas tahá, tá, pá, projeções de uma
mesma raiz, e será, todas supletivas da inflexão de voz imodulável pelo órgão
vocal do aborígene. Dessas partículas- será-
fixou-se no vernáculo, por modismo, mas também substituindo a expressão
portuguesa- será-, razão talvez da sua rápida incorporação, total em São
Paulo e noutros estados do sul, ainda incompleta nos do Norte. Em nheengatu a partícula-
será- aparece, de ordinário, encerrando a frase, posição essa ainda mantida
no português falado entre a gente do povo do Norte do Brasil: - chove será,
isto é, será que chove?" (página 26). Raros são os brasileiros que
pronunciam o "r" de final de palavras. Por exemplo, "pagar"
é falado como "pagá", "amor" soa a "amô" e
assim vai. Pois esse vício de linguagem vem do tupi-guarani. As pessoas menos
escolarizadas têm o costume de trocar o "l" pelo "i". Não
pronunciam "mulher", mas "muié", "pólvora" soa a
"pórvora", "filho" é "fio", etc. Também é
influência do antigo tupi, como lembra Afonso Freitas que acrescenta: "Da
pecularidade do tupi-guarani empregar na frase, de preferência o particípio
verbal ao infinito e de, invariavelmente, antepor as partículas pronominais aos
verbos e aos nomes e pospor aos verbos os pronomes retos, é que os paulistas
dizem- está chovendo, me deixe, me faça o favor, etc., enquanto os portugueses
locucionam- está a chover, construção tão malsoante aos nossos ouvidos,
quanto aos ouvidos lusos devem ser os- me deixe, me faça o favor, do nhengatu
aclimado ao vernáculo. A inexistência da partícula
pronominal- lhe- no nheengatu, decorrente da ausência da consoante- l-, no
alfabeto daquele idioma, deu azo à formação do modismo tão desagradável-
disse pr'á ele (que muitos refinam desastradamente em disse p'r'ele), dá nele,
etc., por disse-lhe, dá-lhe, etc" (página 25). Há tantas palavras tupi
incorporadas ao português que nem percebemos, inclusive até na gíria de
jovens. Por exemplo, há jovens que dizem: "O fulano chegou no serviço e
BABAU. Perdeu o emprego". O "Babau", que muitos acham ser uma gíria
de surfista, é uma expressão secular do tupi-guarani, que significa
"acabou-se". Outra expressão tupi é
"nhenhenhén". "Aquele cidadão é muito cheio de nhenhenhén",
ou seja, que fala e reclama incensantemente. A fala vem de "nheen
nheen", que significa em tupi "fala fala". Vejamos a seguinte
frase: "Este cara é meu xará". Esta palavra, também tida como gíria,
significa "amigo" no antigo idioma indígena. Os gaúchos usam e abusam do
seu típico "tchê" no final de suas frases. "Tchê" é outro
sinônimo tupi-guarani que significa "amigo". Também significa
"eu" e "meu". Mas esta palavra tão usada pelos gaúchos
incorporou-se tanto no português do Rio Grande do Sul como no espanhol dos
argentinos e uruguaios dos pampas fronteiriços ao Brasil por influência também
do guarani do Paraguai. Aliás, o famoso guerrilheiro argentino que participou
da revolução cubana, Ernesto Guevara, que morreu na Bolívia em 1967, era
chamado de "Che" (como é escrito "Tchê" no espanhol).
Portanto, Che Guevara significa "Amigo Guevara", que a história
imortalizou como símbolo da rebeldia e da luta revolucionária esquerdista. Aliás, "gaúcho"
era o nome dado aos índios guaranis que viviam nas missões. Com a dispersão desses
nativos pelos bandeirantes paulistas, os índios que escaparam da escravidão
passaram a viver da pecuária. Nas missões, criava-se gado. Quando foram destruídas,
parte da manada escapou e se multiplicou nos campos dos pampas, que cobrem a
maior parte do Rio Grande do Sul. Outrora, os pampas eram imensidões de pasto
nativo onde ninguém morava. Com o tempo, principalmente no século XVIII, a
ocupação dos pampas intensificou-se principalmente com a formação de
fazendas. O gado criado ao ar livre passou a ser aprisionado e cuidado por peões. Em Minas Gerais, Foram
descobertos ouro e pedras preciosas. Milhares de pessoas, principalmente do Rio
de Janeiro, São Paulo e nordeste brasileiro foram para Minas Gerais em busca do
enriquecimento. Como não plantavam já que passavam o dia inteiro escavando (ou
fiscalizando as minas- daí o lugar ficar conhecido por "Minas
Gerais"), esse contigente de mineiradores tinham que importar a comida que
necessitava. Surgiu o mercado que os fazendeiros do Rio Grande do Sul passaram a
atuar. A carne seca (charque) do RS era vendida em Minas Gerais. Daí a influência
no desenvolvimento econômico dos pampas. E quem eram os peões que trabalhavam
nas fazendas do RS? Eram descendentes dos índios guaranis, que tanta experiência
tiveram na criação de gado quando trabalhavam nas missões. Os índios eram
chamados pejorativamente de "gaúchos". Não é a toa que os atuais
"gaúchos" (agora nome de orgulho) gostam de se chamar de "Índios
Velhos". A influência do tupi está
no vocabulário da fauna. Nome de animais e plantas como jaguar, jacaré,
macaco, sagui (pêlo), tapera (casa abandonada), cangueiro (de
"Acanga"-cabeça, instrumento de tração para os bois), ipê,
piracema, etc, etc, etc. Ao todo, como lembra Raquel F. A. Teixeira, em artigo
no livro "A Temática Indígena na escola (MEC, Mari/ Unesco, Brasília,
1995), 70% do vocabulário do português brasileiro sobre animais plantas provém
do tupi-guarani que tem vasta influência no nome de cidades e acidentes geográficos
no país. Vejamos alguns exemplos. O nome do estado de
"Maranhão" vem de "Mar'Anhan", que significa "O mar
que corre". Já "Paraná" significa "rio" no idioma indígena.
"Pará" é "oceano", "Niterói" "Baía do mar
morto" e assim vai. O Brasil está repleto de cidades com nomes indígenas,
todos, sem exceção, provenientes do tupi-guarani. A contribuição do
tupi-guarani deu-se também na incorporação de ditados populares no folclore
brasileiro. Um deles, muito conhecido, é "Cada macaco no seu galho".
Esse ditado vem da expressão "Macaca tuiué inti hu mundéo i pú
cuimbisca o pé" ( Macaco velho não mete mão em cumbuca). Quando os tupi-guaranis
citavam a expressão contavam a seguinte história. Era uma vez um macaquinho
guloso soube que havias frutas numa certa cumbuca feita de uma árvore chamada
sapucaia. Introduziu a mão no recipiente. Ao tentar tirá-la, a mão ficou
presa. Assustado, o bichinho disparou-se aos pulos pela floresta arrastando a
sapucaia e gritando desesperadamente: Ai! Ai! Ai! Cuimbisca hu pscá se pú! Ai!
Ai! Ai! Cuimbusca hu pscá se pú! (Ai! Ai! Ai! Cumbuca pegou minha mão). Os macacos assustaram-se e
foram ajudar o macaquinho em apuros. Seguraram o filhote e chamaram o macaco
mais velho para aconselhar como retirar a mão do macaquinho da cumbuca. O velho
examinou a cumbuca, pegou uma pedra e, em repetidos golpes, quebrou a cumbuca,
libertando a mão do macaquinho travesso. Recuperado do susto, o
filhote perguntou ao macaco velho: "Macaca tamuia taá inti ana cuimbisca
hu pscá ana i pú? (Vovô, cumbuca já pegou sua mão?) Respondeu o macacão:
Macaca tuiué inti hu mundéo i pú cuimbisca o pé (Macaco velho não mete mão
em cumbuca). A idéia de ensinar
Tupi-guarani como língua optativa nas escolas, como se cogitou para o Rio de
Janeiro, é boa idéia pois trata-se de um resgate da cultura brasileira.
Registro aqui uma sugestão aos intelectuais envolvidos nesse projeto: por que não
elaboram um curso por correspondência do idioma índio e editam uma revista com
textos em Tupi-guarani com traduções em português? Trata-se de um excelente
incentivo que certamente contará com grande receptividade. |
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